“Essa noite eu tive um sonho de sonhador / Maluco que eu sou sonhei / Com o dia em que a Terra parou […]”.
O trecho foi extraído da música ‘O dia em que a Terra parou’, lançada em 1977 por Raul Seixas (1945-1989), e poderia ser apenas mais uma bela canção desse grande cantor e compositor nacional, não fosse pela situação de isolamento mundial que vivemos no momento, em razão da pandemia do novo coronavírus.
Se Raul Seixas já estava prevendo algo, como apregoado por alguns, é impossível saber (e acredito que, provavelmente, não). É inegável, porém, a semelhança da letra com o silêncio que impera sobre muitas ruas e avenidas em várias partes do mundo: “Foi assim / No dia em que todas as pessoas / Do planeta inteiro / Resolveram que ninguém ia sair de casa / Como que se fosse combinado em todo o planeta / Naquele dia, ninguém saiu de casa, ninguém”, diz outro trecho da música, que segue a reforçar a similaridade com o atual cotidiano, salvo exceções daqueles que atuam na área da saúde e alimentícia, por exemplo, e têm-se demonstrado verdadeiros heróis em prol da humanidade.
Para muitas pessoas, em todo o mundo, mesmo pertencentes às gerações mais velhas, a rápida mudança na rotina de bilhões de seres humanos em questão de dias, com o fechamento de quase todos os locais públicos, a determinação da permanência constante em casa, entre outras questões, parecia um cenário apocalíptico. Isso sem contar a enxurrada de informações midiáticas que nos atualizam, a todo o momento, sobre o número de infectados e mortos em razão da Covid-19, para desespero de muitos.
Em meio a tudo isso, outros noticiários também começam a chamar a atenção, como “Poluição atmosférica cai mundo afora com a pandemia de Covid-19”, segundo publicado no site da Superinteressante, ou ainda, “Coronavírus interrompe touradas e 120 touros já estão salvos na Espanha”, de acordo com o site Olhar Animal. E outras, não menos importantes, como aqueles que saem, a todo o momento, ressaltando o empenho de cientistas, de nacionalidades distintas, em frear o avanço do coronavírus e reforçando, mais uma vez, a relevância de destinar verbas para as pesquisas científicas e não cortá-las.
Não podemos dizer que a Terra parou, literalmente, mas, com certeza, podemos afirmar que ela mudou radicalmente. A engrenagem que se movimentava rápida e incessantemente, desta vez, cessou e alterou, por completo, as relações humanas. Vivíamos reclamando que as 24 horas do dia nunca eram suficientes para lidarmos com o nosso turbilhão de atividades diárias. Mas, agora, somos obrigados a lidar com muito mais do que 24 horas, confinados em nossas casas.
Nós reclamávamos que a tecnologia estava destruindo o contato físico, pois nunca estivemos tão cercados de ‘amigos’ virtuais e tão isolados em nossas bolhas, afinal, conversas supérfluas não preenchiam os vazios existenciais, fomentados pela falta de uma relação humana com aqueles com quem dividimos o mesmo teto. Todavia, agora, ganhamos a oportunidade de conhecer essas pessoas. Isso mesmo! Quantos casais e famílias não se conhecem ainda, apesar de viverem no mesmo ambiente, porém estarem separados pelo abismo do trabalho, da tecnologia, do lazer, etc.?
E a mesma tecnologia que criticamos há pouco, nunca foi tão usada para matar a saudade daqueles que não convivem conosco, por meio de chamadas de vídeo, já que, há dias, muitos avós não pegam seus netos no colo, pais não abraçam seus filhos e namorados não beijam suas amadas. Quem diria que tudo isso seria causado por um ser invisível? Mas não dizem que “é no silêncio que o caos maior se instala”, pois, sem o barulho, não o percebemos chegar?
Quando íamos à missa, questionávamos o tempo da homilia, falávamos dos outros, ríamos de alguns e, agora, reclamamos dos templos e das igrejas fechadas.
Mas, por quê? Se, quando estes estavam abertos, não praticávamos os ensinamentos de Cristo. Éramos hipócritas! E, por ironia do destino, mais uma vez, a tecnologia vem auxiliar-nos com a transmissão de celebrações on-line e, quem sabe agora, não consigamos, até, vivê-las melhor, no silêncio de nossa casa, tendo a oportunidade de vivenciar um encontro que evitamos o tempo todo e que a Covid-19 nos proporcionou: o encontro com o ‘eu’ interior e com tudo que ele nos dá direito, nossos defeitos, medos e angústias.
Afinal, reclamamos que não temos roupas para sair, porém, agora, sequer podemos usá-las para ir a algum lugar; que somos sozinhos, mas, agora, realmente, podemos vivenciar tal sensação como nunca antes, que nunca temos tempo para nada, e agora dispomos de bastante. Em meio a tudo isso, seria interessante observar as mídias noticiarem “Famílias se conhecem pela primeira vez dentro de casa”, “O ser humano descobre o essencial da vida”.., e tudo proporcionado por um vírus, o vírus do isolamento.
Precisamos ficar sozinhos para descobrir o valor da união. Eis o paradoxo das relações humanas!
Fonte: Mariana Mascarenhas/A12